Serra de Soajo ... 1
... um Éden no nosso mundo.
Um Éden, aquele Éden que a Teresa Araújo, de Soajo, nos trás através de fotos obtidas nas suas belas caminhadas.
A serra de Soajo é bela todo o ano, durante as quatro estações mas há momentos em que a beleza está mais presente. Sim porque a serra também muda de blusas, de saias, de vestidos, de alcatifas, de carpetes ... como uma mulher de Soajo.
Alto da Derrilheira, na serra de Soajo. A cruz não foi surpresa porque já sabíamos que tinha lá sido colocada. A surpresa foram as vacas junto da cruz. O mais belo e mais nobre sítio para nós e o Senhor da Esfera estarmos todos juntos
É como as belas mulheres de Soajo, que pegam numa enxada e vão cavar a lavoura para semear o milho, para plantar, ou se preferirem, semear as batatas e todas as demais tarefas levadas a cabo nas fraldas da nossa serra. Ela lá está, suja da terra cavada ou enlameada das regas do milho. Por baixo dessa sujidade ela continua a ser uma mulher bonita mesmo vestida de negro, trajes usados pelos lutos com que o mundo a brindou. A morte de familiares ou a emigração do marido ou dos filhos para outros mundos. Era assim no meu tempo de jovem! Hoje poderá ser um pouco diferente mas o âmago está lá. Mulher linda, serra linda, como linda é a água das suas fontes.
Recordo-me de, noutros tempos, quando o marido ou os seus filhotes vinham de visita, o traje negro era substituído por trajes coloridos, os sorrisos tristes eram substituídos por sorrisos alegres, os olhos quase mortiços eram substituídos pelo brilho da felicidade. Ontem como hoje, a serra de Soajo continua a proceder como as mulheres de antanho que levantavam a cabeça para a olhar airosa nos seus horizontes por onde caminhavam grande parte do sustento das suas gentes - as rezes.
Alto da Derrilheira - as vacas até parece que gostaram da cruz
As mulheres de então, quando faltavam os homens, caminhavam pela serra com a vista e com as pernas, atrás dos seus animais. Molhadas e cansadas, tantas vezes, mas tinha de ser.
Hoje, corre nas veias de algumas, tal como o sangue da vida, a memória colectiva dos tempos e a vontade de continuar a olhar a nossa serra de baixo para cima mas também de cima para baixo. Por isso lá vão elas, como as suas mães e avós, por motivos lúdicos observar as alcatifas e carpetes que seus antepassados pisaram para não esquecerem os esforços de outrora.
Foto da Teresa Araújo, um pormenor da serra de Soajo vestida com uma blusa rosa, numa das suas caminhadas primaveris
Quando andava lá pelas minhas Montanhas Lindas, nos meus tempos de rapazote, quando as primaveras eram quentes e amenas, as vacas começavam mais cedo a subir a serra. Procurava as vacas pela Chãe do Boi e já elas andavam pela Naia. Procurava-as pela Naia e já andavam pela Serrinha e, quando dava pela fé, já andavam pela Corga da Vagem, pelo Curral do Pai, pela Pedrada, porque umas seguiam as outras. Um dia, numa dessas primaveras, uma toura já espigada, a Briosa, abandonou as suas parceiras e, acompanhando outras, arrancou serra acima. Eu achava que ela poderia ter ido serra acima porque não a via e procurei-a até ao Curral do Pai, onde estava.
Fui à Pedrada e vi que já havia muito gado no Curral do pai. Desci da Pedrada ao Curral do Pai acossado por muito calor e, lá no fundo, junto às belas ericas rosas ou roxas, como essas em cima, assisti a uma peripécia que ainda hoje recordo e que eu guardo comigo, como se fosse um filme digital. Uma vaca andava ao boi. Haviam, por ali, muitas vacas mas, para essa vaca haviam 14 bois. Uns mais velhadas e outros mais jovens. Sentei-me numa pedra a apreciar a luta, entre os bois, pela posse da vaca. Quando um saltava para cima da vaca, era logo atacado por outro e a vaca não era para nenhum. Numa determinada altura engalfinharam-se numa luta sem tréguas, uns com os outros. Cornada daqui, cornada dali, um dos bois mais novatos, achou que a luta não era com ele, aproveitou a zaragata, entre os outros e foi-se à vaca. Para mim, foi a única vez que assisti a uma guerra daquelas. Claro que nunca a esqueço mas nunca mais assisti a outra guerra igual, nem na serra de Soajo, nem em mais lado nenhum. A beleza daquela refrega entre as ericas rosadas, ficou para sempre gravada no meu cérebro.
Foto da Teresa Araújo, com as rainhas das montanhas alimentando-se sobre as alcatifas rosadas do Ventor. No Éden não haverá nada melhor
Como são belas as ericas floridas! Quando vejo imagens destas, recordo sempre o Curral do Pai, nos tempos que eu batia a nossa serra como um lobo. Os animais da serra de Soajo, como os garranos e as rainhas das montanhas, sempre que alguém se aproxima, levantam as cabeças e observam se serão os seus donos a saber deles.
Obrigado Teresa Araújo (se leres isto) por partilhares as tuas lindas fotos. Mas recordo-te que, sempre que te apeteça pular, saltar, deixares-te cair nessas alcatifas, nunca esqueças que podem abrigar aquelas cobrinhas pequeninas a que chamamos víboras ou uma espécie de escorpiões que eu só vi no Barroco por cima da Assureira. Creio que uns e outros andam por aí. Ao descer a Férrea para Adrão já caí sobre moitas por duas vezes e, pelas duas vezes vi uma cobra castanha passar por baixo de mim, praticamente no mesmo sítio. A última vez foi em 2013 quando uma hérnia lombar me fez a vida negra a subir e a descer essa linda serra de Soajo.