Uma Montaria na Serra de Soajo
Pelos trilhos de uma montaria, na serra de Soajo
Pela serra de Soajo, nos trilhos que já foram dos lobos.
Todas as vezes que os lobos atacavam as ovelhas, as cabras, … e se mostravam junto às aldeias ou, pelo Inverno fora, eram vistas as suas pegadas na neve, os sentidos das gentes das aldeias era fazer uma “Montaria ao Lobo”.
Era um ódio colectivo, histérico mesmo, que se sentia por esse cão selvagem que, afinal, só fazia mal às pessoas quando lhes apanhava algum animal. Mas tinha sido essa outra “besta”, na qual eu me incluo, o homem, que originou o desequilíbrio. Fez desaparecer toda a cadeia de alimentação do lobo! Caçou o javali até à extinção, caçou a corça até à extinção, caçou os coelhos quase até os fazer desaparecer, caçou a raposa, extinguiu os matos, matou as cobras, pescou os peixes com venenos e petardos de trotil, quase extinguiu a ginete, a lontra, o gato selvagem, enfim toda a cadeia alimentar do lobo, directa ou indirectamente, foi levada até quase à extinção ou próxima a desaparecer.
A vida difícil do lobo ao frio e com fome
Assim, o lobo, cada vez mais, passou a virar-se para a caça aos animais domésticos, levando o homem por várias razões a travar uma luta permanente com ele. Eu também fui criado na mentalização do ódio ao lobo, movido pela experiência dos mais velhos. Mas enfim, eu era pequeno e ia fazer-se mais uma Montaria!
A Montaria iria ser uma festa e eu, com cerca de 10-11-12 anos, ia receber “carta de alforria” para participar nessa festa. Todo o homem com arma, partia para fazer gosto ao dedo e participar na grande caçada. Os que não tinham arma, gabavam-se dos seus varapaus! Estes eram de carvalho, de sobreiro, de castanheiro (matéria prima da casa) e, os mais sofisticados eram de lodo, comprado nas feiras dos Arcos ou da Barca, quase todos com uma argola de ferro na base, não fosse preciso ter de se dar umas cacetadas na cabeça dura do lobo, “bicho mau”!
Então, a fina-flor da freguesia de Soajo e arredores, partiam em festa para o grande cerco ao lobo e empurra-lo para o grande buraco do Fojo do Lobo, na Seida, onde seria morto. Todas as aldeias tinham os seus trilhos até ao encurralamento final nessa obra de arte, de séculos, preparada pelo homem, para caçar o lobo.
O lobo deve ser o animal mais odiado pelo homem
Normalmente, os de Soajo, subiam montanha acima, pelo Poulo dos Bicos até à Corga da Vagem e Fonte das Forcadas. Eram eles que varriam os montes de Bordença a fogo. Os de Adrão, onde eu me incluía, subíamos Férrea acima, Chãe do Boi, Fonte da Naia, Muranho. Alguns subiam pelo Alto do Lombo para aterrorizar qualquer lobo que se pudesse ter refugiado na Corga da Cerqueira e, depois se desviavam, nos sorreiros, onde nasce a minha GOTINHA, para o Muranho, Alto da Serrinha e alguns iam pelo caminho da Brusca até ao buraco do Fojo do Lobo. Os de Paradela, Cunhas e Várzea, seguiriam, normalmente, pelas minhas montanhas lindas até à Naia e desviavam-se para o caminho da Brusca. E mais à direita, no lado oposto, subiam os de Tibo, de Rouças e da Gavieira que trepavam pelas brandas dos rouceiros, pelos lados de S. Bento do Cando. Do lado oposto, viriam os de Curral Cova, Cabreiro, Sistelo.
Depois da grande caçada, encontrava-se tudo na Fonte das Forcadas ou na Corga da Vagem! Aí era o culminar da “grande” festa! Normalmente logo a partir da manhã já estavam todos bêbados, pois já subiam a serra com vários mata-bichos no bucho. Depois raro era aquele que se interessava pelas águas límpidas e geladas das nossas montanhas durante a Primavera, tempo das Montarias. Sem vinho não havia festa e o varapau ou a arma numa mão e o garrafão na outra, o burnal às costas e tudo seria à sério e não apenas para a foto! Aliás, penso que apenas os organizadores que a Câmara dos Arcos e não sei quem mais, levariam, além das armas, alguma máquina fotográfica porque dera-as Deus.
Muita daquela malta, tinha armas ou petardos e a fazer fogo com as armas ou a rebentar petardos, intimidavam o lobo, fazendo-o sair dos seus esconderijos e subir a serra. O lobo tinha bons esconderijos dentro das encostas que se dão pelo nome de Brusca e era até, um dos locais onde as lobas tinham os seus filhotes, os lobinhos. Era uma zona de grandes rochedos e matagal de urzes, alguns carvalhos velhos e retorcidos e pouco crescidos e outros matos. Nos locais mais verdes, uma espécie de vales em miniaturas, entre as rochas, haviam fetos maiores que um homem, e eu afirmo isso, porque passei lá algumas vezes. Era também uma zona de víboras, a tal cobra venenosa que há na Península Ibérica! Havia também um bom esconderijo na Corga da Cerqueira, do lado contrário virada para os montes de Bordença, coberta de um matagal denso de urzes e também do lado do Guidão.
Além dos tiros das armas de fogo e dos rebentamentos de petardos, haviam também alguns apologistas de grandes barulhos, usando para isso caixas de percussão, tal como o nosso João Casanova, um especialista na matéria. A caixa dele, bem repenicada ouvia-se em quase toda a serra de Soajo! Além disso, fazia parte da festa a algazarra de todos, que também queriam dar o ar da sua graça, gritando a bom gritar, fazendo jus dos seus pulmões e goelas, acreditando também que o lobo não ficaria em nenhum buraco.
Foi assim que a tal loba olhou para mim, mas aterrorizada
Na primeira montaria a que assisti, mataram três lobos. Vi-os expostos na fonte das Forcadas, para gáudio de todos e eu também senti um pouco desse gáudio pois sabia que aqueles não matariam mais cabras e ovelhas e outros animais, nem me apoquentariam nas minhas caminhadas serranas.
Na montaria que me marcou, teria 12-13 anos, eu e uns quantos, fomos pelo Muranho, e vi um lobo, fugido da Brusca, galgar as rochas a nosso lado e a olhar-nos com a mesma curiosidade que nós o olhávamos a ele. Esse lobo, olhou-me bem, olhos nos olhos, embora muito afastado, como a perguntar-me: “também tu, Ventor”?
Lá subiu, serra acima, direito ao alto da Serrinha, e nós, no mesmo caminho. Atravessamos o Alto da Serrinha até junto ao topo do muro que parte desde o Buraco do Fojo, em direcção à Fonte das Forcadas. Ao chegar ali, ouvimos petardos para o lado do Curral do Pai, talvez dos homens de Curral Cova ou Cabreiro e, direito a nós, um lobo que tinha atravessado a Corga das Forcadas, a grande velocidade. À sua frente, estava eu com a minha vara de castanheiro e 12 ou treze anos de altura de pelo! Os meus companheiros dirigiram-se para os buracos do muro para reforçarem a sua guarda. Eu fui descendo de vagar pois à minha esquerda, mas bem afastado, vinha o meu amigo Zé Ribeiro, que Deus tem em Sua guarda, um homem baixinho, quase do meu tamanho, mas tinha uma arma com ele! Era uma espingarda de carregar pela boca e o fulminante era feito de pólvora embrulhada em lixa de caixa de fósforos que o cão iria incendiar levando ao célebre tiro, sendo o chumbo feito por pequenos estilhaços de ferros de um pote velho despedaçado para o efeito.
Mais abaixo, também afastados, outros que se dirigiam para o muro com o fim de bloquear a saída dos lobos para o lado da Brusca, pelos locais derrubados.
Entre mim, o Zé Ribeiro e a ponta do muro, havia um espaço razoável e pensei que seria por ali que o lobo passaria.
Que este Fojo do Lobo, na serra de Soajo e todos os outros, não passem, no futuro, de um monumento nas nossas Montanhas Lindas
Que viva o lobo Ibérico!
O lobo vindo da corga das Forcadas, galgava tudo direito a mim. O ti Zé Ribeiro ainda estava bastante afastado e começou a correr para se aproximar. Fiquei sozinho com o lobo, frente a frente. Com a minha vara na mão e a gritar para o lobo, ele não me ligava e cheguei a pensar que ia saltar por cima de mim para o lado da Brusca, mas arrependeu-se, meteu os travões todos e voltou para trás, rumo à corga das Forcadas.
Os homens que vinham do Curral do Pai continuaram a estoirar os últimos petardos, o lobo retrocedeu e reinicia a corrida em minha direcção outra vez. Vinha em alta velocidade. Quando se aproximava de mim, o ti Zé Ribeiro, já mais perto, meteu a arma à cara e dispara. Os cacos de pote atingiram o lobo no lombo. Vi ele eriçar o pelo todo e mudar de direcção para dentro do Fojo do Lobo.
O lobo galga tudo à minha esquerda e eu galgo tudo à sua direita. Mais à frente iria ficar entre nós o grande Muro! Vamos direitos à ponta do grande muro e ele passa a correr por dentro e eu corro por fora. Até parecia que, ele e eu, conhecíamos as regras estipuladas pelos homens. Eu ainda vi o lobo umas duas vezes pelos buracos existentes nos muros mas devidamente ocupados por outros homens com armas ou varapaus, mas o fogo cerrado sobre aquele lobo era demais!
As armas dos guardas da floresta e dos guardas fiscais, penso que seriam Mausers, e muitas caçadeiras de outros atiradores cuspiam chumbo sobre o desgraçado do lobo e sobre a minha cabeça ouvia o som sibilante do ricochete das balas e dos zé-galotes nas rochas de granito. Eram zim, zim … zim-zins que nunca mais acabavam.
Eu continuei a fuga sempre junto ao muro. O lobo corria a toda a velocidade que podia e conseguiu chegar ao buraco camuflado com mato e, segundo me contaram, ter-se-à apercebido da armadilha tentando saltar, ficando pendurado no muro a tentar não cair para trás, para o buraco, mas sim procurando o impulso para o lado da Brusca. Foi aí que um tiro mortífero de meu pai abateu esse lobo. Por acaso era uma loba e tinha dentro da barriga 4 lobinhos! Essa loba há cerca de um ano antes desse dia fatídico para ela, tentara matar um poldro que a mãe protegia. Meu pai, sentado num local afastado, notou a égua muito nervosa levantando-se no ar e ameaçando algo. Levantou-se e viu o lobo a tentar afastar a cria da mãe. Colocou a arma à cara apontou e disparou sobre o lobo quase escondido no meio do feto. O lobo iniciou uma corrida direito ao rio da Várzea e passou junto a um homem que mais tarde, no mesmo dia, disse ao meu pai que o lobo a que ele deu o tiro não tinha rabo. O meu pai tinha atirado sobre um lobo com rabo e, no regresso, já ao anoitecer, passou pelo local e encontrou no meio do feto o rabo do lobo que trouxe e ofereceu a alguém para colocar na cabeçada de um cavalo. Penso que o ofereceu ao ti Manuel da Leira.
Cerca de um ano depois, meu pai teria terminado no buraco do Fojo do Lobo, o trabalho que começara na Chãe da Porca!
Nessa Montaria foram mortos dois lobos mais essa loba com os quatro lobinhos na barriga e eu estava muito insatisfeito com a satisfação de tão distintos caçadores de montaria. Foi um dia que me marcou para sempre! Fui a mais duas montarias e comecei a sentir que algo estava mal pelos trilhos das montanhas da minha serra! Desde essa altura que passei a ser um defensor dos lobos, nossos companheiros de caminhada.
Lamentei sempre que aquela loba não tivesse passado por mim, direita à Brusca.